Existem condições históricas para António Costa cuidar dos enfermeiros
Portugal é um país de paradoxos. Primeiro os portugueses brindaram António Costa com uma maioria absoluta. Mas a seguir tememos os possíveis efeitos negativos dessa maioria absoluta. Noutro plano, os enfermeiros terão atingido o pico de prestígio devido ao seu combate à pandemia que a História por certo irá registar, mas isso não significou o devido reconhecimento por parte do seu maior empregador, o Serviço Nacional de Saúde, o mesmo é dizer por parte do Governo e da dupla António Costa/Marta Temido.
António Costa sucede a António Costa. O primeiro-ministro não é um novato. Tem um histórico de seis anos de governação, só como primeiro-ministro. Seis anos em que os enfermeiros marcaram passo. Vejamos, por exemplo, as condições salariais. Um enfermeiro no primeiro escalão, se não fizer turnos nem horas extras, recebe menos de mil euros. Difícil de acreditar? O cenário piora quando sabemos que um número insuportável de enfermeiros tem mais de 20 anos de profissão e está ainda no primeiro escalão.
Por ação do Governo de António Costa, o ordenado mínimo está agora nos 705 euros e, muito bem, ambicionam-se valores mais elevados. Mesmo não sendo exatamente comparáveis, os 705 euros aproximam-se dos tais menos de mil euros que recebem os enfermeiros. A cada vez mais badalada aproximação do ordenado mínimo ao ordenado médio seria isto, não fosse dar-se o caso de este primeiro vencimento, que a maioria dos enfermeiros recebe, ficar abaixo do ordenado médio nacional. Quer aumentar – como se deseja – o ordenado médio nacional, Sr. primeiro-ministro? Pode e deve começar pelos enfermeiros. Se Portugal fosse feito apenas de enfermeiros seria a maior Meritocracia do mundo.
Dificilmente um primeiro-ministro terá melhores condições para compensar de forma justa os enfermeiros. Além da maioria absoluta, dispõe de um PRR poderoso, uma economia a crescer e do apoio institucional de Marcelo Rebelo de Sousa, que já afirmou que os enfermeiros devem ser compensados a nível pecuniário. Fica assim perfeitamente ao alcance de António Costa “valorizar as carreiras dos enfermeiros, designadamente através da reposição dos pontos perdidos aquando da entrada na nova carreira de enfermagem”.
O que está entre aspas não é da minha autoria. Foi antes retirado do programa do PS para as Legislativas deste ano. Ou seja, esta é uma excelente oportunidade para António Costa prestigiar a política, concretizando uma promessa eleitoral. É de elementar justiça. Mas o programa socialista contém outras medidas que, mesmo não sendo especificamente dirigidas aos enfermeiros, gostaríamos de ver aplicadas porque, no final, o que desejamos é um SNS mais eficaz e robusto que trate os utentes melhor e com a máxima dignidade.
O programa socialista prescreve uma “mudança efetiva do SNS”, permitida pelo “novo Estatuto do SNS, a par dos investimentos e reformas previstos no PRR”, bem como “reforçar a autonomia na gestão hospitalar em matéria de contratação de profissionais de saúde”. Ainda de acordo com este programa, “é essencial continuar a política de reforço dos recursos humanos da saúde, promovendo a motivação pelo trabalho no SNS, o equilíbrio entre a vida familiar e profissional e a contínua evolução científico-profissional, com foco na melhoria das carreiras profissionais”. Por último, “criar e implementar medidas que visam substituir o recurso a empresas de trabalho temporário e de subcontratação de profissionais de saúde, numa aposta clara nas carreiras profissionais e na organização e estabilidade das equipas com vínculo aos próprios estabelecimentos de saúde”.
Se António Costa, em versão maioria absoluta, concretizar o que inscreveu no seu programa eleitoral, isso será sem dúvida significativo face à penúria de políticas que fizessem justiça aos enfermeiros nos últimos seis anos. Essa ausência não nos impede de termos alguma esperança.
Mas, como sindicalista, temos mais a reivindicar. Desde logo, a retoma das negociações sobre a criação de um Acordo Coletivo de Trabalho. Ou o fim da inaceitável desigualdade entre colegas com Contrato de Trabalho em Funções Públicas e Contrato Individual de Trabalho. Os deveres são os mesmos, mas os direitos são bem menores no caso destes últimos, o que é inaceitável.
A pandemia colocou num patamar ainda mais elevado os riscos que os enfermeiros enfrentam no dia-a-dia. É um sentimento geral, as pessoas recearem uma ida ao hospital com medo de contraírem uma doença. É esse risco que os enfermeiros (e outros profissionais de Saúde) enfrentam todos os dias. Ao mesmo tempo, além de conhecimento técnico e capacidades intelectuais, os enfermeiros necessitam também de disponibilidade física, que começa a faltar à medida que a idade avança.
Contudo, apesar destas verdades, aos enfermeiros não é reconhecido o risco e a penosidade da profissão, nem existe qualquer diminuição na idade da reforma face ao regime geral. Por isso o Sindepor, o sindicato que lidero, continuará a lutar pelo reconhecimento do risco e da penosidade da enfermagem, bem como pela diminuição da idade da reforma para níveis suportáveis e mais compatíveis com a realidade dos factos.
Existem outras questões que guardaremos para outros momentos, até porque ansiamos que o primeiro-ministro coloque em prática o diálogo que prometeu na noite da vitória eleitoral. Que não sejam apenas palavras vãs.
Termino como comecei, com um paradoxo. Apesar de muito debilitado, o SNS conseguiu responder ao que lhe foi e é exigido num momento excecional da nossa história. E, sem qualquer desprimor para com as outras profissões do setor da Saúde, grande parte da resposta pandémica foi dada pelos enfermeiros, como foi então reconhecido por quem liderou os que contribuíram para tornar o processo de vacinação contra a covid-19 num exemplo a nível mundial, o vice-almirante Gouveia e Melo.
Os enfermeiros dispensam jogos de futebol como agradecimento. Provavelmente, António Costa tem nas suas mãos condições nunca antes vistas na história de Portugal para poder atribuir aos enfermeiros o que é da mais elementar justiça. Esperamos que o primeiro-ministro esteja à altura da História!
Carlos Ramalho,
Presidente do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor)
Leia aqui o artigo de opinião publicado no jornal PÚBLICO.