Um Governo à beira de um ataque de nervos – greve dos enfermeiros

Os últimos acontecimentos verificados a propósito da greve dos enfermeiros, da requisição civil decretada pelo Governo e da gigantesca campanha de manipulação levada a cabo pela sua “tropa de elite” de comentadores e opinantes, não devem permitir que deixemos de ver o que é essencial e, sobretudo, que deixemos de reflectir sobre aquilo que está aqui verdadeiramente em causa.

Creio, assim, que se impõe revisitar, ainda que de forma um pouco extensa, uma série de pontos, relevantes e reais, que são precisamente aqueles que o Governo do Sr. Costa e os seus apoiantes precisamente não querem que se discutam e aclarem aos gritos demagógicos de “eu sou pela vida!”, de “não admito greves que ponham em causa a vida e a saúde dos doentes!” e de “eles (os enfermeiros) estão ao serviço de interesses inconfessáveis e querem é destruir o Serviço Nacional de Saúde!”.

1) Reivindicações

Os enfermeiros são uma classe profissional profundamente preocupada, dedicada e empenhada nos cuidados de saúde dos pacientes a seu cargo. E as suas reivindicações são essencialmente quatro, e todas elas inteiramente justas”:

  1. Equiparação de vencimento aos outros técnicos superiores da saúde com habilitações literárias idênticas, como os farmacêuticos, os psicólogos e os nutricionistas (os quais têm vencimentos iniciais de 1.600€ mensais, enquanto os enfermeiros, mesmo que com mestrado ou até doutoramento, têm 1.200€);
  2. a recuperação da carreira (em termos de categorias) destruída há cerca de 10 anos por outra Ministra da Saúde (Ana Jorge) de um outro governo do PS, com o reconhecimento quer de 3 categorias, correspondentes aos diferentes níveis de responsabilidade, quer, também, da respectiva remuneração. O Governo diz que está a fazer isso, mas a verdade é que a grelha que quer aprovar, em termos salariais, representa 0 de valorização salarial já que a diferença entre um enfermeiro e um enfermeiro especialista será de 150,00€, que é exactamente aquilo que desde 2018 e por força da luta, em 2017, dos enfermeiros especialistas, já é pago a estes a título de “suplemento”;
  3. uma carreira justa também em termos de evolução de imediato e de futuro, já que, com a proposta do Governo, os enfermeiros – que, relembre-se, hoje estão praticamente todos (mais de 90%) na base da carreira, recebendo 1.201,48€ brutos mensais, tenham eles 1, 5, 10 ou mais de 20 anos de profissão! – terão 11 níveis de evolução, levando em média 10 anos para subir de nível (o que significa um século para atingir o topo da carreira!?);
  4. a idade da reforma aos 57 anos, devido à elevada carga física com procedimentos técnicos e físicos muito exigentes, à movimentação de pesos muitas vezes superiores ao próprio peso, ao risco de contaminação, à penosidade resultante do excesso de carga de trabalho (há muitos serviços que só funcionam com os enfermeiros a prestarem regularmente horas extraordinárias em cima das horas normais), dos turnos, e da impossibilidade prática de os enfermeiros mais velhos serem dispensados dos turnos e do trabalho nocturno, e enfim à dureza psicológica decorrente do contacto permanente com a dor, o sofrimento e até a morte dos pacientes a seu cargo.

2) No tempo do Passos Coelho os enfermeiros estavam calados?

As reivindicações antes referidas – ao contrário do que se tem ouvido dizer – são um “ponto de partida” negocial e já são antigas, tendo sido sucessivamente apresentadas aos diversos governos, e designadamente ao de Coelho/Portas. Mas foram assumindo cada vez mais premência quer com o agravamento progressivo das condições de trabalho dos enfermeiros nos últimos anos, quer com a sistemática postura dos diversos ministros da Saúde, em particular os últimos (Paulo Macedo, Adalberto Campos Fernandes e Marta Temido), consistente em fazerem contínuas e públicas declarações de “disponibilidade para o diálogo”, mas depois, e na prática, se recusarem a negociar de forma séria o que quer que fosse. O saco dos enfermeiros foi assim enchendo e enchendo até que, como era inevitável, um dia transbordou de vez. E foi o que agora aconteceu.

Mas se a dignidade e as condições mínimas adequadas ao exercício da profissão de enfermeiro foram assim sendo sucessivamente degradadas ao longo dos últimos 10/15 anos, a verdade é que essa degradação se acentuou de forma muito particular a partir de 2017.

É que Portugal é, segundo os dados da própria OCDE, o país com menor número de enfermeiros por 100.000 habitantes (4,2), quando a média geral é de 9,2. Há, como já referido, inúmeros serviços que apenas conseguem funcionar com um esforço sobre-humano dos enfermeiros, trabalhando as horas dos seus turnos mais uma coisa inconcebível que são as chamadas “horas extraordinárias programadas” (ou seja, horas extra, não para fazer face a situações excepcionais, mas sim como meio “normal” de suprir necessidades, violando assim o próprio conceito legal de horas extraordinárias).

Ora, face a esta situação, o Governo de Costa tem, de forma manipulatória, anunciado que tem contratado mais enfermeiros, mas sem que isso represente afinal mais enfermeiros ao serviço. Como é tal possível? É, infelizmente, bem simples. Por exemplo, até 2017 um determinado serviço funcionava com 15 enfermeiros, sendo 10 dos quadros (e cujos salários constam assim das “remunerações de pessoal”) e 5 contratados através de empresas prestadoras de serviços (e cujos valores entravam pela rubrica, não de salários, mas de “serviços” do Hospital). Com a declaração da inconveniência ou até da ilicitude deste tipo de contratação, esses enfermeiros foram mandados embora, e o Governo contratou então para os quadros (apenas) mais 2. E, assim, a Ministra da Saúde pôde, mais uma vez, intoxicar a opinião pública proclamando que até aumentou em 20% (de 10 para 12) o número de enfermeiros daquele serviço, quando na realidade eles diminuíram de 15 para 12!

3) O “perigo” dos novos sindicatos

A chamada “greve cirúrgica” decretada pelas 2 associações sindicais, o Sindepor e a ASPE, é uma greve que perturba profundamente o Poder. E não só o Governo como também os Sindicatos tradicionais, desde logo porque, não tendo aqueles sindicatos elos de ligação político-partidária, as formas de controle habitualmente usadas pelos partidos da área do Poder (como, por exemplo, o telefonemazinho para o dirigente do sindicato ou da confederação sindical para que trate de acalmar as respectivas bases…) aqui não funcionam. E os novos sindicatos, que já não se satisfazem com uns protestos simbólicos à porta do Ministério ou com umas formas de luta totalmente inócuas (como os abaixo-assinados, as cartas abertas ou até as greves às sextas-feiras de tarde), são perigosos, quer para o Governo, quer para os sindicatos tradicionais, que assim veem as lutas e os trabalhadores nelas empenhados escaparem ao seu controle. E, desesperados, não raras vezes se juntam até à entidade empregadora para atacar e discriminar os outros sindicatos. Não nos esqueçamos de que já vimos este “filme” nas recentes lutas dos professores e dos estivadores (como sucedeu com o STOP e o SEAL a serem atacados e até, no primeiro caso, excluídos das negociações, quer por patrões quer por outras associações sindicais!).

É este autêntico pavor por a luta dos enfermeiros ter escapado ao controle dos ditos sindicatos “tradicionais” que leva não só o Governo do Sr. António Costa ao desespero e ao frenesim no ataque a essa mesma luta, como à complacência, senão à cumplicidade, com esses ataques, e inclusive com a própria requisição civil, por parte dos mesmos sindicatos “tradicionais”.

4) Porque não cede o Governo?

António Costa e o seu Governo são bem sabedores de que têm inúmeros outros trabalhadores a atingirem o ponto de saturação quanto ao espezinhamento dos seus direitos e às contínuas falinhas mansas do diálogo sem qualquer conteúdo real e concreto. Desde os próprios médicos e outros trabalhadores da Saúde até aos diversos profissionais do sector da Justiça, da Administração Interna, das Finanças, etc., para já não falar dos trabalhadores do sector laboral privado que constatam que o Governo não quer mexer uma palha nas mais gravosas medidas da Tróica, como a da facilitação e drástico embaratecimento da contratação precária e dos despedimentos colectivos, por extinção do posto de trabalho e por inadaptação, bem como a da caducidade da contratação colectiva.

E, por isso mesmo, Costa quer a todo o custo destruir esta greve, seja de que forma for, para passar a mensagem aos outros trabalhadores de que “quem se mete com o Governo PS, leva!” (lembram-se desta frase de Jorge Coelho?) e de que nem pensem em fazer greves e/ou recorrer a formas de financiamento colaborativo como forma de combater a arma anti-greve favorita dos patrões que é a asfixia financeira).

O empenho difamatório, persecutório e ameaçador das actuações do Sr. António Costa e do seu governo têm aí a sua razão principal. E todos os trabalhadores do país devem ver hoje nos enfermeiros aquilo que o Governo lhes reserva para amanhã, quando se fartarem em definitivo das tais “falinhas mansas” sem conteúdo e das lutas “folclóricas” e se dispuserem a combater a sério.

5) “Mas eles até queriam negociar…”

É cada vez mais óbvio que, desde o primeiro momento, aquilo que o Governo quis foi “acabar com a greve dos enfermeiros” (para usar a própria terminologia da Ministra da Saúde em instruções aos Conselhos de Administração hospitalares) por meio da requisição civil. Aqui vão alguns factos, indesmentíveis, que inteiramente o comprovam:

  1. O Governo começou por pedir, no final do ano passado, um primeiro parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, quer sobre a licitude da greve, quer sobre a questão de saber se o Governo poderia decretar a requisição civil dos enfermeiros fora da verificação de um quadro de reiterado incumprimento dos serviços mínimos. E, ao mesmo tempo, iniciou uma intensa campanha de propaganda disfarçada de “abalizadas opiniões jurídicas”, sustentando e passando para a opinião pública a ideia de que a requisição civil, mesmo sem incumprimento de serviços mínimos, era legal e constitucionalmente possível;
  2. como o dito Parecer (o nº 35/2018, que terá sido aprovado ainda em Dezembro de 2018, mas só foi publicado em 19/2 no Diário da República, embora com data de 18/2) não lhe fosse favorável, declarando que os elementos fornecidos pelo Governo “não são suficientes (…) para se concluir pela ilicitude da greve” e ainda que “o Governo só poderá recorrer à requisição civil dos enfermeiros nos termos do Dec. Lei nº 637/74, de 20/11, caso se verifique um reiterado incumprimento ou cumprimento defeituoso dos serviços mínimos estabelecidos”, o que fez o Governo? Meteu na gaveta o dito “Parecer”, e tratou de, entretanto, forjar fundamentos para um “Parecer complementar” que viesse então ao encontro dos seus desejos!

6) Cirurgias URGENTES adiadas por causa da greve dos enfermeiros?

Seguiu-se então o verdadeiramente inaudito, com o adiamento de intervenções cirúrgicas a ser atribuído (nomeadamente em conversa com os doentes e seus familiares, naturalmente indignados com a situação tal como ela lhes era narrada) à greve dos enfermeiros, inclusive em estabelecimentos hospitalares onde não houve sequer greve (caso do Amadora-Sintra e de Leiria) ou então em hospitais onde essa não realização dos actos cirúrgicos foi propositadamente criada.

De que forma? Designadamente através dos expedientes de, como sucedeu nos Hospitais de S. João no Porto e Universitário de Coimbra, na altura da greve e da prestação dos serviços mínimos, se alargarem os programas cirúrgicos que estavam anteriormente delineados para uma extensão que nem com o funcionamento normal dos serviços seria possível cumpri-los. Ou ainda de se alterarem, em cima da hora, as classificações de prioridade dos doentes e depois, face à impossibilidade assim criada de serem intervencionados, mandá-los para casa porque… “a culpa é dos enfermeiros em greve”. Isto, ao mesmo tempo que sucedia (mesmo já em requisição civil, mas também antes dela) os equipamentos e os enfermeiros estarem prontos para a realização de actos cirúrgicos na parte da tarde e, todavia, os mesmos não se realizarem nesse período do dia (como, por exemplo, sucede, e desde há décadas, no Hospital de Viseu, ou seja, que não se fazem cirurgias nas sextas-feiras da parte da tarde).

7) As suspeitas acerca do Crowdfunding

O Governo foi também lançando, através dos “especialistas” governamentais da contra-informação, as insinuações de que o tal fundo de greve estaria a consistir em donativos de origem duvidosa, designadamente de associações políticas ou profissionais ou, sobretudo, de grupos privados da Saúde, que assim pretenderiam fazer concorrência desleal e destruir o Serviço Nacional de Saúde. E, mais do que isso, fez mesmo despertar dum longo e letárgico sono a ASAE para, qual seu “braço armado”, vir realizar ao referido fundo dos enfermeiros uma inspecção (que foi, não por acaso e muito significativamente, a primeira desde que ela está legalmente prevista e regulamentada).

E, assim, intencional e perversamente se preparou e se possibilitou aos usuais comentadores e opinantes, bem como aos sempre activos trollsdas redes sociais, começarem a propalar: “malandros dos enfermeiros. Afinal eles estão ao serviço de grupos privados da Saúde e estão a ser financiados por eles para acabar com o SNS!”.

É claro que o facto de rigorosamente nada permitir suportar semelhantes aleivosias e de o próprio site da Plataforma patentear que não havia donativos alguns dessa natureza e origem duvidosas – tal como depois noticiou o Expresso do passado Sábado, 16/2 – já não interessou nada, pois que a manobra (e a eficácia) da calúnia estava irreversivelmente lançada.

E nenhum dos caluniadores apareceu depois a retratar-se nos órgãos da mesma comunicação social que antes os promovera.

8) A novela dos Pareceres

Depois de o Governo ter finalmente decretado aquilo que desejava desde o primeiro momento, ou seja, a requisição civil, mas sem indicar, como devia, na fundamentação da respectiva Resolução do Conselho de Ministros um único facto concreto do alegado incumprimento dos serviços mínimos – incumprimento esse que os enfermeiros sempre negaram veementemente – o que se seguiu ainda foi mais inaceitável e inacreditável.

É que, entretanto, o Sindepor apresentou na segunda-feira 11/2, no Supremo Tribunal Administrativo, um processo administrativo especial e urgente para a protecção do direito fundamental à greve, o qual – uma vez mais contra a posição dos “especialistas” próximos do Governo – foi liminarmente aceite, sendo ordenada a citação do Governo e do Ministério da Saúde para contestarem em 5 dias, ou seja, até terça-feira 19/2.

Ora, não só continuaram então as manipulações dos programas cirúrgicos e as alterações da atribuição das prioridades, como se mantiveram as tais insinuações sobre o financiamento colaborativo.

Tudo isto até que na sexta-feira 15/2, ou seja, com o referido processo judicial a decorrer, vemos a ministra da Saúde convocar para as 19h45 uma conferência de imprensa (que depois prolongou cirurgicamente lá bem para o meio dos telejornais) e a aparecer, triunfantemente, a invocar que já proferira um despacho a homologar um (novo) Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, o qual considerava a greve ilícita por questões relativas quer ao pré-aviso, quer ao financiamento, e ainda que – pasme-se! – “a ilicitude da greve está fixada”, pelo que a mesma tinha que acabar, procurando assim antecipar-se e substituir-se aos Tribunais e arrogando-se uma competência que, nos termos do artigo 205º da Constituição, só estes, e não de todo o Governo, têm, ou seja, a de declarar a ilicitude de actos ou situações.

Mas há mais ainda! É que, neste jardim à beira mar plantado que cada vez mais parece uma verdadeira “república das bananas”:

  1. O dito 2º Parecer aparece publicado na terça-feira 19/2 (ainda que com data do dia anterior), bem como o 1º Parecer, que permanecera fechado a sete chaves, mas já não era possível ignorar e cuja data, pasme-se, está truncada, pois o texto publicado no Diário da República refere: “Este Parecer foi votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de … de fevereiro de 2019” (sic), assim não permitindo saber com precisão quantos dias durou a respectiva “quarentena”;
  2. é publicado também um despacho de homologação (o nº 1741-A/2019), mas da autoria do Primeiro Ministro, e que afinal é restrito à “parte relativa dos fundos de greve e às conclusões aí extraídas quanto à ilicitude de uma greve financiada através do recurso a mecanismos de financiamento colaborativo (crowdfunding)” (sic);
  3. o alegado – e publicamente anunciado nas televisões na sexta-feira 15/2 – despacho de homologação da Ministra da Saúde nãoé publicado e desaparece de circulação, e quando questionados pelos jornalistas sobre o que afinal se passava, os Serviços do Ministério respondem que ele não tem que ser publicado. Voltamos assim ao tempo dos despachos secretos de antes do 25 de Abril…;
  4. o dito 2º Parecer do Conselho Consultivo não só confunde, tão manifesta quanto lamentavelmente, as regras relativas ao funcionamento das associações sindicais (constantes do artº 405º do Código do Trabalho) com as regras legais de fundos de solidariedade ou do financiamento colaborativo levados a cabo por grupos de cidadãos (a já citada Lei nº 102/2015), como se permite um juízo opinativo da pretensa ilicitude da greve, com base – pasme-se! – em meras suposições ou suspeições (as tais da “campanha negra”), invocando que “pode vir a apurar-se a existência de donativos que são ilícitos, por violarem o disposto no artº 405º, nº 1 do Código do Trabalho ou outras normas ou princípios que vigoram no nosso ordenamento jurídico” (sic, 21ª conclusão), e que “a ilicitude desses donativos poderá provocar a ilicitude da greve caso se demonstre que estes, pela sua dimensão, foram determinantes dos termos em que a greve se desenrolou” (sic, 22ª conclusão).

Ou seja, dizem os doutos juristas da PGR que, como não sabem se houve ou não donativos ilícitos e se foi por causa deles que os grevistas fizeram aquela greve, então a mesma greve é ilícita! Novo regresso ao 24 de Abril, com a teoria do: “como não sei se fizeste ou não, então concluo que fizeste e que, deste modo, a tua conduta é ilícita”.

O que, aliás, não espanta, quando um dos autores do dito 2º Parecer, Eduardo André Folque da Costa Ferreira, se permite produzir esta verdadeira “pérola” do mais absoluto reaccionarismo:

“Em situações de limite, como a desta greve, há que refletir sobre a definição de mínimos nos serviços públicos essenciais, porventura reservando ao Governo a última palavra, em lugar de permanecer confiada a tribunais arbitrais desvinculados da prossecução do interesse público.”.

Por fim, convirá dizer que o dito Despacho homologatório do Primeiro Ministro – proferido sobre o parecer relativo à 1ª greve terminada em 31 de Dezembro e restrito à questão do crowfunding– constitui apenas uma interpretação oficial para os serviços, mas não para os trabalhadores que se encontram no exercício do direito fundamental à greve (como bem opinou, entretanto, contra os especialistas próximos do Governo, o Prof. Vieira de Andrade), não tem eficácia vinculativa externa, nem tem natureza normativa (não é lei!) nem jurisdicional (não é sentença) e não se pode de todo substituir à decisão dos Tribunais.

É claro que a “pólvora sem fumo” que o Governo julgou ter descoberto, mas que padece de inúmeras irregularidades e ilegalidades, foi logo tão abusiva quanto convenientemente amplificada para: “PGR decreta que a greve dos enfermeiros é ilícita!”. E de imediato transformada em instruções urgentes para se “acabar com a greve dos enfermeiros”, ameaçando-os com o corte das retribuições, com a marcação de faltas injustificadas e com processos disciplinares visando inclusive o seu despedimento.

E visa de igual modo criar uma intolerável pressão sobre os Juízes do Supremo Tribunal Administrativo para que não ousem proferir uma decisão desfavorável ao Governo sob pena de, se o fizerem, logo “levarem”, ou seja, serem acusados também de permitir o sofrimento e até a morte de doentes!

9) Concluindo…

A fúria persecutória do Governo parece assim não ter limites e decorre de todas as razões já atrás enunciadas. Mas nada tem que ver com a vida ou a saúde dos doentes, com cujas listas e tempos de espera o Governo e a Ministra da Saúde nunca se preocuparam até à primeira greve dos enfermeiros. E cuja existência real até procuraram falsear através de manipulações estatísticas e de apagões informáticos operados pela chamada ACCS – Autoridade Central dos Cuidados de Saúde no período de 2014-2016, e detectadas e denunciadas no Relatório da Auditoria da 2ª secção do Tribunal de Contas nº 15/2017, de 17/10/2017, no tempo em que tal Autoridade era presidida precisamente pela actual Ministra da Saúde.

E, já agora, em 2016 faleceram cerca de 2.600 doentes à espera de uma intervenção cirúrgica sem que o Governo do Sr. Costa tenha decretado qualquer requisição civil contra si próprio. E sem que a grande maioria das pessoas que agora tão violentamente se insurgiu contra os enfermeiros tivesse então feito sequer algo de semelhante em nome do direito à vida!

Mas se já Gil Vicente foi certeiro ao dizer que “se queres ver o vilão, mete-lhe a vara na mão”, não é menos verdade que mesmo os maiores gigantes têm pés de barro e quem se habitua a mentir e a cuspir para o ar, inevitavelmente, acaba um dia afogado pelo próprio cuspo!

Concorde-se ou não com a greve de fome de Carlos Ramalho, Presidente da Direcção do Sindepor, o certo é que ela é a expressão de uma vontade de dignificação de uma classe que luta há bem mais de 10 anos e que esgotou todas as formas de luta “fofinhas”. Trata-se de um enfermeiro que sente que está a lutar, não apenas por si próprio e pela sua classe, mas sobretudo por todos os cidadãos que precisam do SNS.

Termino assim com um apelo, e um apelo muito sentido: não se despojem nunca do vosso espírito crítico. Examinem as questões com seriedade e profundidade, não alinhando nem em “bocas” nem, muito menos, em insultos ou campanhas negras de homicídio de carácter. Não aceitem como legítimas a manipulação e a contra-informação. Verifiquem sempre os factos. Debatam todas as questões até ao fundo e não aceitem que esse debate seja substituído pelos chavões e sound bitesrepetidos até à exaustão por quem não tem qualquer argumento.

Quem, como os enfermeiros, tem a Justiça e a Verdade do seu lado, sabe que um dia lhes será reconhecida a razão!

António Garcia Pereira

Leia aqui a notícia na íntegra.